Seguridade Social e Dívida Pública
Maria Lucia Fattorelli
Uma das mais importantes conquistas sociais alcançadas com a Constituição Federal de 1988 foi a institucionalização da Seguridade Social, organizada com base no tripé formado pelas áreas da Saúde, Previdência e Assistência Social. Esse tripé tem sido o mais relevante instrumento de distribuição de renda do país, representando também a garantia, ainda que parcial, de direitos fundamentais básicos a milhões de brasileiros que não tem como recorrer aos sistemas privados de saúde e previdência.
O sustento da Seguridade Social tem sido possível porque os constituintes não se limitaram a regulamentar o direito da população, mas cuidaram também de garantir o seu financiamento fixando as fontes de receitas provenientes de contribuições sociais pagas pelo conjunto da sociedade, pelos trabalhadores e pelas empresas. Assim, a Seguridade Social passou a ser sustentada não somente pela contribuição incidente sobre a folha de pagamento dos trabalhadores, mas também pelas contribuições sociais como a COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) e a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido), além de outras fontes detalhadas no Gráfico 1.
Quando devidamente computadas todas essas fontes de financiamento, verificamos que a Seguridade Social tem sido altamente superavitária nos últimos anos, ou seja, as receitas arrecadadas superaram o conjunto de despesas em R$22 bilhões em 2009; R$ 40 bilhões em 2008; R$ 60,9 bilhões em 2007; R$ 50,8 bilhões em 2006, R$ 62 bilhões em 2005, conforme publicado pela ANFIP:
Gráfico 1 – Receitas e Despesas da Seguridade Social
Apesar desses fabulosos superávits, a grande imprensa e o governo insistem em alardear um falacioso “déficit da Previdência”. Essa tática visa convencer a opinião pública da necessidade de conter reajustes de benefícios e realizar sucessivas reformas neoliberais que retiram direitos duramente conquistados, prejudicando trabalhadores e aposentados. Exemplos recentes dessa estratégia são o Projeto de Lei 549 que congela salários dos servidores públicos por 10 anos e a ameaça de veto ao reajuste de apenas 7,7% concedido aos aposentados que auferem provento superior ao salário mínimo.
Na realidade, não existe o alardeado “déficit” da previdência. Ele resulta de conta distorcida que considera apenas as contribuições sobre a folha de salários, como se esta fosse a única fonte de financiamento da Previdência, ignorando-se as demais fontes previstas na Constituição, detalhadas no Quadro 1, que demonstram o contrário.
O verdadeiro problema é que parte relevante dos recursos do sistema de Seguridade Social – cerca de 20% - são desviados, a cada ano, por meio da DRU (Desvinculação das Receitas da União), para o cumprimento da meta de superávit primário, a fim de garantir o pagamento de juros da dívida pública. Esse desvio é repudiável, especialmente devido à enorme carência por serviços de saúde e assistência social.
A atual proposta de reforma tributária em andamento no Congresso Nacional – PEC 233/2008 – coloca em risco o financiamento da Seguridade Social, na medida em que extingue as contribuições sociais e as transforma em imposto, acabando com a vinculação constitucional e permitindo que uma quantidade ainda superior de recursos seja desvinculada e direcionada ao pagamento de juros da dívida.
Esse desvio de recursos de áreas sociais para o pagamento de dívida é motivo de repúdio ainda maior, tendo em vista que esta nunca foi objeto de uma auditoria, como previsto no Art. 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
A recente Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Dívida Pública na Câmara dos Deputados apurou que o principal componente dessa dívida foram os próprios juros, ou seja, trata-se de dívida meramente financeira, sem contrapartida em bens e serviços ao povo brasileiro, que está pagando muito caro, tanto por meio da elevada carga tributária como pela falta de serviços públicos adequados.
O pagamento de juros e amortizações da dívida consumiu em 2009 a fabulosa quantia de R$ 380 bilhões – mais de R$ 1 bilhão por dia – o que representa 35,57% do Orçamento da União, conforme Gráfico 2. Cabe ressaltar ainda que essa relevante cifra não considerou a chamada “rolagem”, isto é, o pagamento de amortizações por meio da emissão de novos títulos. Caso computada a rolagem, os gastos com a dívida consumiram quase a metade dos recursos orçamentários: 48,24%.
Gráfico 2 - Orçamento Geral da União – 2009 – Por função – Total: R$ 1,068 trilhão
. Fonte: SIAFI. Elaboração: Auditoria Cidadã da Dívida. Não inclui o “refinanciamento”.
O valor de R$ 380 bilhões gasto com a dívida em apenas um ano representa mais que 12 vezes o custo anunciado pelo governo para o fim do fator previdenciário nos próximos 5 anos. Embora páginas e páginas da grande mídia tenham alimentado a necessidade de “veto” à recente aprovação, pelo Congresso, do fim do fator previdenciário – mecanismo que adia o direito à aposentadoria e reduz o benefício do trabalhador - a mesma mídia nada divulgou sobre a necessidade de aprofundamento das investigações sobre o endividamento público, que ademais de consumir a maior parte dos recursos, pratica as taxas de juros mais elevadas do planeta. O fim do fator previdenciário acabou sendo vetado pelo presidente Lula em 15 de junho de 2010, dia da estréia do Brasil na Copa do Mundo. Ainda existe outro projeto em andamento sobre o tema - PL 3299/2008 – que não tem previsão de votação e já contou com diversas manifestações contrárias do governo.
Outro aspecto digno de nota é a velocidade do crescimento dos gastos com a dívida pública em comparação com os demais gastos federais, conforme série histórica retratada no Gráfico 3, superando os gastos com Previdência Social (mesmo incluindo todos os servidores públicos), representando mais que o dobro de todos os gastos com pessoal ativo e aposentado (R$ 165 bilhões), ou o equivalente a 12 vezes os gastos com educação e 8 vezes os gastos com saúde.
Gráfico 3 - Orçamento Geral da União – Gastos Selecionados – R$ milhões – 1995 a 2009
A CPI da Dívida concluiu seus trabalhos em 11 de maio de 2010, tendo os documentos obtidos apontado diversos e graves indícios de ilegalidades: aplicação de juros sobre juros (prática considerada ilegal pelo Supremo Tribunal Federal); evidências de conflitos de interesses na definição das taxas de juros, face à influência direta de agentes do mercado financeiro; relevantes danos ao patrimônio público em sucessivas negociações da dívida externa e interna que nunca chegaram a ser auditadas; falta de transparência na publicação dos juros nominais efetivamente pagos; violação dos direitos humanos e sociais, dentre outros, tendo o Voto em Separado do Deputado Ivan Valente (PSOL/SP) e análises técnicas realizadas em apoio à CPI da Dívida Pública sido entregues ao Ministério Público para o aprofundamento das investigações.
O estrago provocado pelo endividamento de caráter meramente financeiro tem sido experimentado por países da Europa que se endividaram para socorrer a bancos privados, especialmente Grécia, Portugal, Espanha e Itália, comprometendo toda a zona do Euro. Apesar de a razão da crise ter sido o socorro ao sistema financeiro, os trabalhadores e os aposentados é que estão sendo chamados a pagar a conta, com redução de salários e aposentadorias, além de forte ajuste fiscal que sacrificará principalmente aos mais pobres.
Não podemos deixar o Brasil chegar a esse ponto, razão pela qual é preciso difundir o mecanismo da AUDITORIA DA DÍVIDA, instrumento fundamental para que o Estado possa enfrentar o problema do endividamento, pois possibilita a documentação das ilegalidades e ilegitimidades, como evidenciado na recente experiência equatoriana, permitindo a revisão de contas e aumentando significativamente a destinação de recursos para as áreas sociais e para investimentos geradores de emprego.
A auditoria também servirá para demonstrar como a política econômica atual está estruturada para privilegiar o pagamento da dívida financeira, em detrimento do atendimento das necessidades sociais. Baseada na produção de Superávit Primário (com aumento da carga tributária e cortes de gastos sociais), no Regime de Metas de Inflação (que equivocadamente elegeu as taxas de juros como único instrumento de controle da inflação) e no livre fluxo de capitais (que permite movimentos especulativos), a atual política econômica colocou o Brasil a serviço dos interesses do mercado, mantendo elevadas taxas de juros e acelerado crescimento da dívida pública, acirrando o fosso social vivente em nosso país.
É por isso que o movimento da Auditoria Cidadã da Dívida defende a realização da auditoria da dívida pública prevista na Constituição, pois a sociedade tem o direito de saber que dívida é essa que está asfixiando a sociedade, onerando as contas públicas, e ainda apresenta tendência crescente, conforme demonstrado nos Gráficos 2 e 3.
O exemplo equatoriano foi um passo histórico para a América Latina. A partir da auditoria oficial que apontou relevantes indícios de ilegalidades no processo de endividamento público, o presidente Rafael Correa suspendeu os pagamentos e, após análises jurídicas que confirmaram a consistência do relatório de auditoria, tomou a decisão soberana de reconhecer somente cerca de 30% do valor da dívida, o que foi imediatamente acatado por mais de 95% dos detentores dos títulos equatorianos.
No Brasil, a CPI da Dívida Pública recentemente concluída na Câmara dos Deputados também apontou uma série de indícios de ilegalidades tanto na dívida externa como na dívida interna, desde a sua formação. Tais indícios devem ser devidamente investigados, como no caso equatoriano, para que não continuemos destinando a maior parte dos recursos públicos para o pagamento de dívida suspeita de ilegal enquanto são desrespeitados direitos humanos fundamentais de grande parte dos brasileiros. AUDITORIA JÁ!
i Coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida – www.divida-auditoriacidada.org.br
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